10 mar, 2022 - 17:00 • Lusa
Dos 40 exemplares do "Livro de Missas, Magnificas e Motetes", de Diego de Bruceña, impressos em 1620 pela casa de Susana Muñoz, só está comprovada a existência do exemplar descoberto em 2015.
O único exemplar sobrevivente do "Livro de Missas, Magnificas e Motetes", de Diego de Bruceña, impresso há 400 anos e descoberto na Concatedral de Miranda do Douro, está a ser digitalizado pelo Boston College, antecedendo a interpretação em concerto.
Para o musicólogo Michael Noone, responsável pelo Departamento de Música da universidade norte-americana - uma das principais academias na investigação da música antiga e do período barroco, a nível mundial - esta coletânea da polifonia sacra da Renascença constitui "um grande tesouro da história da música da Península Ibérica”, como afirmou à agência Lusa.
Dos 40 exemplares do "Livro de Missas, Magnificas e Motetes", de Diego de Bruceña, impressos em 1620 pela casa de Susana Muñoz, só está comprovada a existência do exemplar descoberto em 2015, em Miranda do Douro, no distrito de Bragança, tendo por isso despertado desde logo a curiosidade da comunidade musicológica internacional.
“Até essa data [2015], pensava-se que todas as composições de Bruceña estavam perdidas para sempre, mas a excecional descoberta deste exemplar permitiu recuperar grande parte [da sua obra] de música sacra, do início do século XVII”, disse à Lusa a diretora do Museu Terra de Miranda, Celina Pinto.
O livro tem uma capa de madeira com 92 centímetros de largura e 60 de altura, e foi impresso na cidade de Salamanca, Espanha, pela “prodigiosa gravadora de música sacra Susana Muñoz”.
Esta "empreendedora mulher de negócios, através de sucessivos casamentos estratégicos, com figuras-chave da florescente atividade tipográfica de Salamanca", como Antonio Pérez e Artus Taberniel, manteve uma atividade constante entre 1602 e 1625, tendo impresso mais de 120 títulos de música sacra, um número recorde em relação a qualquer outra empresa ibérica, na Era Moderna, segundo os investigadores.
O exemplar sobrevivente tem 210 páginas, tendo sido identificada a perda de 80 o que impõe um trabalho minucioso de reconstituição musicológica, de modo a suprimir as partes musicais em falta.
As obras aqui recolhidas, segundo os investigadores, apresentam texturas sonoras complexas, em termos melódicos e rítmicos, características da polifonia ibérica tardia, podendo congregar até 11 vozes.
A proximidade de Susana Muñoz a Pérez e Taberniel, e à importância da tradição flamenga da impressão, é "mais um aspeto que vem sublinhar a importante relação cultural entre Antuérpia e Miranda do Douro, mas é também um testemunho profundo da riquíssima vida musical da catedral no século XVII”, sublinhou a diretora do museu.
O objetivo do minucioso processo de estudo e digitalização a que o "Livro de Missas..." está agora a ser submetido, tem por objetivo a sua disponibilização à comunidade científica, assim como a músicos, intérpretes e público em geral.
O trabalho de digitalização está a ser coordenado pelo musicólogo e regente Michael Noone, responsável máximo pelo departamento de música do Boston College, instituição de origem jesuita, com mais de 150 anos de história.
"Dos 40 livros impressos em 1620 e que foram distribuídos por várias catedrais europeias, não há conhecimento, até ao momento, que mais algum exemplar deste Missal de Diego de Bruceña, tenha sobrevivido”, explicou à Lusa o investigador, especializado em música do Renascimento.
Celina Pinto, diretora do Museu Terra de Miranda, e o musicólogo Michael Noone observam o único exemplar sobrevivente do "Livro de Missas, Magnificas e Motetes", que está a ser digitalizado pelo Boston College. Foto: Francisco Pinto/Lusa
Celina Pinto, diretora do Museu Terra de Miranda, e o musicólogo Michael Noone observam o único exemplar sobrevivente do "Livro de Missas, Magnificas e Motetes", que está a ser digitalizado pelo Boston College. Foto: Francisco Pinto/Lusa
Michael Noone teve o primeiro contacto com o livro há cerca de três anos, quando visitou pela primeira vez a cidade de Miranda do Douro, por causa da obra em causa, e depressa percebeu que estava perante "uma pérola" da música sacra europeia.
“Esta era a peça que faltava de um conjunto de livros de música sacra impressos por Susana Muñoz, no início do século XVII”, disse agora o investigador, em nova visita.
A digitalização em curso obedece a critérios “de alta-definição", sendo "tiradas cerca de uma centena de fotos a cada página do livro":
De acordo com o investigador, o trabalho tem de ser concretizado no Museu da Terra de Miranda, já que era praticamente impossível deslocar este livro para Boston “dada a sua fragilidade”.
“Agora vamos proceder à colocação destas 100 fotos por página na internet para que a obra - este grande tesouro da história da música da Península Ibérica - esteja ao alcance de todos”, vincou Michael Noone.
O livro, segundo o especialista, diz muito sobre a “alta cultura musical” praticada há 400 anos na região fronteiriça de Espanha, entre Zamora, Salamanca e Miranda do Douro.
“Apesar de incompleto, é muito fácil interpretar as peças musicais escritas nas 210 páginas que resistiram à passagem do tempo”, frisou o musicólogo, numa alusão à natureza da polifonia e ao processo de sobreposição das suas linhas melódicas proeminentes.
Compositor sacro dos séculos XVI e XVII, Diego de Bruceña terá gozado de grande fama no seu tempo, embora a perda de grande parte das suas obras o tenha votado ao esquecimento.
Registos da época colocam-no como mestre da capela da catedral de Orense e de Oviedo, numa primeira fase, culminando o seu percurso em Zamora, a partir de 1608, depois de uma passagem breve por Burgos. Das suas obras são destacados motetes como "Lauda Jerusalem Dominum" e "De Profundis".
A descoberta deste "Livro de Missas, Magnificas e Motetes" resgata assim o seu nome e a sua obra, como a comunidade musicológica destaca.
No próximo dia 02 de abril, um conjunto de obras deste único exemplar do livro de Bruceña serão interpretadas em Londres pelo agrupamento The Renaissance Singers of London, dirigido por David Allinson, especializado no repertório da Música Antiga.
Terminado o trabalho de digitalização, a Concatedral de Miranda do Douro acolherá igualmente, e pela primeira vez, um conjunto de concertos com base neste livro de 400 anos, para dar a conhecer uma expressão sofisticada da polifonia do seu tempo.
O trabalho dos especialistas da universidade de Boston decorre em colaboração com a Concatedral e o Museu da Terra de Miranda.