Terminou em festa o Portugal Lés-a-Lés mais exigente dos últimos anos
O genuíno espírito reencontrado numa pequena aldeia transmontana
Num Portugal de Lés-a-Lés marcado por um calor abrasador, atravessando um percurso bem trabalhoso ao longo da zona raiana nos dias mais quentes do ano, os cerca de 2400 participantes precisaram esperar pelos últimos dos 1216 quilómetros do percurso para viver um momento do mais genuíno espírito do evento que a Federação de Motociclismo de Portugal organiza desde 1999. Gigantesca surpresa que transformou a pequena aldeia de Freixiosa, do concelho de Miranda do Douro, no verdadeiro epicentro do universo motociclístico. Os 47 habitantes viram a sua pequena aldeia invadida pelos elementos de um dos mais ativos e criativos clubes que acompanha a Comissão de Mototurismo na FMP, os Conquistadores, de Guimarães, que deram um toque único à povoação, ajudando os mototuristas a esquecer as agruras do calor.
Temperaturas altas que foram companhia constante desde Faro, tornando a edição de 2022 numa das mais duras de sempre (lado a lado com a não menos escaldante 2017 ou a chuvosa 2010), mas que, na última etapa, entre a Covilhã e Bragança deram algumas tréguas. O dia até começou agradável para a ‘prática da modalidade’, com a frescura matinal a ajudar a apreciar tranquilamente as paisagens bucólicas nas faldas do mais alto maciço montanhoso do continente. Tranquilidade que, apesar de todo o cuidado dos mototuristas, não impediu o despertar de curiosidade nas pequenas aldeias atravessadas, com o assomar às portas e janelas de rostos estremunhados pela inusitada agitação. Estradas e estradinhas, variando entre as mais rápidas e outras cheiinhas de prazenteiras curvas, permitindo agradável arredondar dos pneus até Castelo Mendo onde o primeiro controlo do dia fazia companhia ao mais alto pelourinho de Portugal, honrado com a presença da ‘realeza’ do Moto Clube do Porto.
Momento histórico seguido de uma não menos impressionante visita à monumental fortaleza de Almeida, famosa pelas casas com telhados de pedra à prova de bomba, onde marcou presença a NEXX. Que, além da assistência necessária aos capacetes fabricados na Anadia e da indispensável água, propunha um jogo simples e cujo prémio era uma t-shirt exclusiva da marca. Mas as t-shirts voltaram quase todas para casa, tão fraca era a pontaria dos participantes que não conseguiam atirar ao chão umas simples latinhas com as bolas de ténis.
Prazeres escaldantes Portugal acima
Seguiu a longa e heterogénea caravana para norte, rumo ao Parque Natural do Douro Internacional, não sem antes vislumbrar a serra da Marofa, de atravessar o Rio Águeda e abeirar o Douro em Barca de Alva. Pelo caminho tempo para desfrutar da estrada nacional 221, rebatizada de ‘Simone de Oliveira’, por força das semelhanças com a cantora e atriz. Nostálgica, indestrutível e bela, oferecedora de uma elegância única a curvar, que teria como recompensa o café, os pastéis de nata e as águas frescas no Oásis BMW-Antero, a poucos metros de mais uma fronteira luso-espanhola.
Curvas, muitas curvas, que foram palco momentos de grande prazer de condução para os mais experientes como para os novatos, até nova paragem, em Mogadouro. Onde o estreante Alcides Queirós só lamentava “ter desperdiçado, durante 23 anos, a possibilidade de descobrir Portugal de uma forma única”. Com um sorriso jovial e um entusiasmo que disfarçava os 63 anos de idade, exibia orgulhosamente a bandeira da freguesia de Carregosa, Oliveira de Azeméis, enquanto contava a sua história.
“Uns amigos lançaram o desafio e, assim que a vida pessoal e profissional permitiu, fiz a inscrição e lá fui até Faro. Foi o cumprir de um sonho de longa data. Sozinho, e sem ninguém conhecido, coloquei uma questão a uns participantes que estavam por lá e acabei a fazer o percurso com os ‘cinco violinos’, os meus novos amigos. E, para que fique registado, todo o percurso foi cumprido na íntegra e ao minuto, com a Honda 700 Deauville que tem três ou quatro vezes o meu peso…” Mais uma prova de que o Lés-a-Lés é para todas as motos, mas não é para todos os motociclistas!
Amores e tradições que teimam em resistir ao tempo
Em Mogadouro, no preciso local onde arrancou a edição de 2011, a paragem deu para recordar as sensações da estrada ‘Helena Costa’, o troço da N221 até Freixo de Espada à Cinta, curvilínea, elegante e resistente como a atriz que conta no seu ’palmarés’ com os dois Lés-a-Lés mais escaldantes: o de 2017 e de 2022. E que, tal como todos os motociclistas, teve que fazer opções na parte final do percurso, entre as visitas aos miradouros de Picões, Freixiosa e São João de Arribas. Além da imperdível e obrigatória passagem pela espetacular sede do Moto Clube Abutres do Asfalto, na recuperada estação ferroviária de Sendim, onde não faltaram as Pauliteiras de Sendim (sim Pauliteiras!, meninas).
Já os mais conhecidos Pauliteiros de Miranda estavam em força na aldeia da Freixiosa, onde teve lugar uma das mais espetaculares demonstrações de dinamismo e carinho regional de que há memória em mais de duas décadas de Lés-a-Lés. Depois de, na véspera, os Conquistadores de Guimarães terem feito ‘estragos’ em Penha Garcia, ‘voltaram à carga’ com cerca de meia centena de figurantes na mais pequena aldeia da Freguesia de Vila Chã de Braciosa. Onde Dalila Valentim, a ‘filha querida’ que a todos os habitantes da Freixiosa acode, indo muito além das funções de tesoureira da junta não se poupou a esforços para criar um momento inolvidável. Apaixonada pela sua aldeia natal, não esqueceu o berço mesmo depois de passagens da vida por França, Porto e Lisboa. “Há 3 anos surgiu a oportunidade de voltar e logo foi aceite sem hesitar. Daí para cá, todo o trabalho é feito em prol da população, de média etária muito, mas mesmo muito, elevada”. E aqueles que são o casal mais jovem da terra, pais da mais nova habitante da aldeia, Matilde, de 10 anos, tudo fizeram nas últimas semanas para reunir as condições para uma grande festa.
“O desafio lançado pela presidente da autarquia de Miranda do Douro, Dr.ª Helena Barril, foi levado muito a sério, motivando toda a população e artesãos de Freixiosa e Fonte da Aldeia, num evento que será, seguramente, recordado por muitos anos”. Isto é, afinal, a essência do Portugal de Lés-a-Lés, criado em 1999 por força do entusiasmo de cinco motos clubes (Porto, Estarreja, Mototurismo do Centro, Motards do Ocidente e Lisboa). Descobrir a essência de Portugal, as suas paisagens e gentes, as suas estradas e artesanato, como as navalhas de Palaçoulo, as gaitas de foles e castanholas, as peças criadas a partir do burel.
Daí até ao epílogo, em Bragança, a passagem por Miranda do Douro ajudou a perceber a importância do mirandês, a 2.ª língua oficial de Portugal, bem patente na toponímia das terras atravessadas. Bem como o valor dos burros de Miranda, raça que esteve quase extinta e foi recuperada por algumas associações como o Parque Ibérico de Natureza e Aventura de Vimioso onde estava um dos últimos dos 18 controlos que atestavam o cumprimento total do percurso gizado pela Comissão de Mototurismo da FMP.
E, claro, Lés-a-Lés sem caminhos terra não é aventura que se preze. Por isso, ainda antes da chegada a Bragança, tempo para um desvio com direito a passagem pela ponte visigótica sobre o rio Maçãs, construída no século XIV. Sólida como a maior aventura mototurística da Europa e, quiçá, do Mundo. Com novo episódio já marcado para 2024. E com a particularidade de celebrar as bodas de prata.
Por falar em festa, momento alto desta edição foi um insólito pedido de casamento em pleno palanque de chegada do habitué dos moto-ralis João Correia à sua companheira de sempre, Rita Martins. Que disse que sim!