Quem cruzar as ruas de Miranda do Douro, na expectativa de ouvir falar mirandês, poderá não o encontrar com muita facilidade. Com efeito, há cerca de quatro séculos que esta língua terá deixado de se falar na cidade, tornada episcopal em 1545 e alguns antes elevada a sede de comarca, sofrendo, por isso, um forte crescimento económico e demográfico, o que terá contribuído decisivamente para a substituição do mirandês pelo português. Assim, o mirandês viu-se acantonado nos pequenos centros, sendo aí que mais se pode ouvir esta língua, filha do latim e moldada pelas gerações que há muitos séculos habitam o extremo sul do vasto território onde se falou o asturo-leonês. Por outro lado, os seus falantes, cujo número rigoroso é difícil de determinar, sempre se habituaram a falar “grave” (nome dado ao português) na presença de forasteiros, reservando o mirandês para situações mais intimistas.
Mas o mirandês está a regressar serenamente à cidade. Trazido pelos habitantes das aldeias que vão abandonando os pequenos centros rurais e utilizado, ainda que ao abrigo dos sobranceiros ouvidos citadinos, em situações comunicativas diversas. Por outro lado, é a cidade que agora se orgulha de ostentar a toponímia em mirandês, colocando igualmente painéis informativos, diante dos seus monumentos mais emblemáticos, na língua que é também sua.
O falar mirandês cresceu com a Terra de Miranda, herdeira das antigas divisões administrativas leonesas. Contudo, nas entranhas dos seus castros, dispostos sobranceiramente sobre as escarpas do Douro, há vestígios arqueológicos, históricos e, naturalmente, linguísticos, de outros povos pré-romanos que habitaram a região. Lavradores, boieiros e pastores calcorrearam as arribas do Douro deixando na toponímia, nas expressões telúricas e metafóricas com que baptizaram as terras e as entranhas das fragas, as marcas indeléveis da sua passagem. Topónimos como Ourrieta, que significa concha de terra arável na montanha; Mamolas e Marmolinas, do megalítico; Castro e Castralhouço, da cultura dos castros; Canhada e Cardeinhas, nomes proto-históricos; Fraga de Proba Moços e Faia la Moça, que nos lembram antigas histórias e ritos; Rodielha e Carril Mourisco, nomes de antigas estradas romanas; assim como outras raízes ou elementos lexicais, atestam e confirmam os traços históricos dos povos que aqui viveram e mourejaram.
Esta civilização agro-pastoril, com fortes marcas comunitárias, tem-se mantido até quase aos nossos dias. E nem as falésias do Douro representaram um obstáculo intransponível para as gerações de trabalhadores, contrabandistas e aventureiros que calcorrearam as fronteiras rumo ao nascente, prolongando os laços seculares que nos unem às vizinhas regiões de Saiago e de Aliste.
O mirandês viveu, durante séculos, no seu estado natural, a fala. Embora as primeiras formas escritas se encontrem em documentos datados do século XII, só em finais do século XIX, pelas mãos de José Leite de Vasconcelos, a língua mirandesa viu a primeira tentativa de a fixar por escrito. No século XX encontramos muitos nomes que, à luz do filólogo, procuraram dar continuidade a esse trabalho de fixação do mirandês. Assinalem-se, sem pretensões de exaustão, os trabalhos de tradução realizados pelo Abade Manuel Sardinha, pelo Padre Francisco Meirinhos, assim como Bernardo Fernandes Monteiro. Para além destes, há que referir os nomes de autores e contadores mirandeses ou da região, como Bazílio Rodrigues, Francisco Rodrigues Brandão, Francisco Reis Domingues, Trindade Coelho que no teatro, na poesia, nas crónicas, foram dando forma a muitos textos que hoje fazem parte do património escrito da língua mirandesa.
O mirandês interessou também muitos investigadores portugueses e estrangeiros. Na continuidade do já referido Leite de Vasconcelos cuja obra, Estudos de Filologia Mirandesa, publicada em dois volumes em 1900 e 1901, continua a ser uma referência para o estudo desta língua, há que referir outros nomes como Menéndez Pidal, Herculano de Carvalho, Leif SletsjØe, assim como Erik Staaff, cujos trabalhos são fundamentais para quem pretenda iniciar uma investigação sobre este idioma. Mas o século XX assistiu, sobretudo, ao trabalho extraordinário do vulto maior da língua e cultura mirandesas: António Maria Mourinho. Nas suas múltiplas facetas, de historiador, antropólogo e linguista, este investigador deu corpo a um vasto património – que hoje faz parte do Centro de Estudos com o seu nome, sedeado na Biblioteca Municipal – onde se procura estudar e dar continuidade ao seu trabalho em prol da língua e da cultura mirandesas.
Para o último quartel do século XX, estavam reservadas as mudanças mais importantes na história da língua mirandesa. Entre outras, assinalamos a introdução no ensino (desde o ano lectivo 1987/88); a elaboração de uma norma escrita (a Convenção Ortográfica foi publicada em 1999); o reconhecimento político (através da Lei 7/99, de 29 de Janeiro, sem esquecer o Despacho Normativo n.º 35/99, de 5 de Julho de 1999 que regulamenta o direito à aprendizagem do mirandês); e os estudos científicos sobre a língua, quer em pequenos artigos quer nas teses universitárias que se têm produzido (nomeadamente na Universidade do Minho, Coimbra, Toulouse – Le Mirail e Salamanca), e a edição do Pequeno Vocabulário Mirandês – Português da autoria do Padre Moisés Pires. Estes factores terão contribuído, cada um à sua maneira, para a emergência de um renovado interesse pela língua e pela cultura mirandesas, cujas faces mais visíveis são também o nascimento de uma literatura em mirandês, a colocação de toponímia em quase todas as localidades linguisticamente mirandesas, o aparecimento em diversos órgãos de comunicação social, assim como de um prolífico conjunto de textos de dimensão realmente inusitada.
O mirandês interessa, em primeiro lugar, aos seus falantes, nomeadamente pelo valor simbólico de afirmação identitária, sendo inegável que a prática de uma língua local favorece também o desenvolvimento intelectual e a abertura para outras culturas. Por isso, o domínio da língua mirandesa tem ainda mais importância se considerarmos que a mesma constitui uma chave de acesso ao património comum das culturas que se exprimem através das línguas românicas, assim como o conhecimento destas culturas permite enriquecer a aprendizagem e o domínio da língua mirandesa. Importa assim reconhecer a língua e a cultura mirandesa não como um obstáculo à circulação da informação e das ideias, mas antes afirmar as vantagens que ela traz na abertura a uma dimensão regional da modernidade.
Assim, se o futuro da língua mirandesa depende, em primeiro lugar, dos seus falantes, a sua continuidade está também relacionada com a existência de instituições e meios de transmissão como a escola e outras instituições. Apesar das transformações sociais concorrerem para a situação de precariedade em que se encontra a língua mirandesa, a realidade mostra-nos que esta ainda mantém a sua vitalidade, para a qual tem igualmente contribuído a política cultural da autarquia, nomeadamente no apoio à edição de variadíssimas obras em mirandês.
Professor Doutor António Bárbolo Alves